Olhou o velho dentro do ônibus. Lembrou de Vanessa da Mata: "aquele velho pode ser eu". Uns 90 anos. Dias antes uma cigana havia lido sua mão e disse que a linha da vida ia até os 70. "Não, não pode ser eu...". Dias antes havia lido Clarice Lispector, um conto onde a personagem dizia - pela autora, ou a autora pela personagem -, que cada vez que via alguém assumia um pouco daquela personalidade, da aura daquele ser.
A mulher negra, flácida, de muitas carnes que passou em frente ao velho tinha uma camisa com estampa que fazia referência ao Black Power. Parecia professora. Ensinava algo pelo visual. Tinha muitas pastas e livros a mão, fora as coisas que devia ter na bolsa pendurada no ombro, estilo estojo-bag.
O velho, com seu chapéu de pescador muito maior do que a cabeça, coçou o cabelo, provavelmente porque enxergou aquilo com seu olhar de catarata e não entendeu muito bem. Vinha de uma época antiga onde o preconceito era mais escancarado, contemporâneo da expressão: "... Preto quando não * na entrada, * na saída...". E ainda pensava assim. Talvez se surpreendesse ao ver seu neto tendo aulas com uma mulher de cor que leva no peito o orgulho de sua afro-descendência. Condescendentes diriam que o velho não tem culpa por seu pensamento. Fora criado assim...
A professora foi dar suas aulas. Ele, o senhor, desceu no próximo bar pra rabujar com seus escassos amigos sobreviventes a essa altura, ou foi pra casa olhar a foto da mulher que morrera há tempos e felicitá-la por não ter que passar por isso. Ou: antes de chegar ao bar ou ao retrato da 'sua velha' branca como um sulfite A4 - igual ele -, de olhos verdes esmeraldas faiscantes (diferentes dos dele que já estavam cinzas), trupica, cai, esborracha a boca e a dentadura que carregava um 'picadão' de fumaça acinzentada, deixando escorrer um sangue vermelho-escuro, quase negro, ficando claro que no fundo d'alma, na lama, no poço, no fim derradeiro, prestes a se tornar novamente pó, todos não passam de meros humanos, demasiados frágeis, e muitos buscam ser fortes querendo prevalecer sobre outros de alguma forma, consciente ou inconscientemente. Pelamor. Que seja pelo amor, e não pela dor.
Um futuro mais diverso na paleta de tonalidades dos sentidos para as crianças que verão a imagem estampada nas vestes da 'tia', 'fessora', e só depois de aprenderem a dar significados aos signos poderão entender que se colocar no lugar do outro é o primeiro passo para a tolerância, cedendo lugar aos mais velhos nos ônibus da vida - literais ou figurados -, fazendo um futuro melhor a cada hora, e qualquer um que olhe esses velhos no futuro irá se enxergar neles, já que essa premissa terá sido passada às gerações vindouras.