quinta-feira, 19 de abril de 2012

É soda. É soja.

O mundo está por um triz. É a raspa do chifre do bode. Falta soja, sobra soda. A palavra que poderia seguir rimaria, mas não deve ser dita nesse horário. Poderá haver crianças na sala. E que tenha. Mas afinal, que horas são? 

- Mamãe, o mundo é soda?

- Não é bem isso, meu filho. É que a outra palavra você não pode aprender ainda. Mas você já tem idade pra saber que devemos preservar o mundo! Bebe seu suco! 

O mundo é soja! 

A criança fica dispersa. É hora de comer, mas tem a televisão. Para ele o mundo está por um triz: a porta da rua. E a definição de mundo é pequena, não chega muito além da esquina do quarteirão, onde fica o mercadinho, onde são vendidas diversas leguminosas. A mãe sabe que ele não irá comer esse tipo de coisa. Não custa insistir. Está com cinco anos, não sabe bem o que quer. 

Fica difícil exigir de seres humanos tão pequenos esse peso nas costas. O peso do mundo. E o mundo será deles, no futuro, tão logo. 

Bodes não passam na rua sua. Um cavalo puxa o carrinho, às vezes o próprio homem puxa. 

- Poxa! 

São os dois que por ali diariamente transitam, em meio aos caminhões, ônibus, tubos que soltam fumaças pretas e pessoas que jogam embalagens pelos vidros. 

- Filho, pega o que você jogou... 

- Mas todo mundo joga mãe... 

- Todo mundo não tem educação, você tem! 

- Depois o cara do cavalo pega mãe... 

- Não senhor! Ele já tem muito trabalho. Trabalha por mim, pelo seu pai, por você, pelos seus amiguinhos... 

Valha-os Nossa Senhora. 

O menino não sabe o que é ozônio. 

- Mamãe, vaca solta pum? 

A pergunta fica no ar, como o gás que sobe para as alturas das nuvens. 

Não pode brincar na chuva. A mãe tem medo de gripe: 

- Deixa ele, benhê, antes que a chuva fique ácida! 

O pai tem um humor negro. Por enquanto, quando cai o temporal, enchentes fazem propaganda quando estampam várias marcas de produtos diversos nas águas que correm enlameadas. 

A vida está por um triz. As mães precisam ensinar para os que chegam como preservá-la, pois se não, do mesmo jeito que animais ficam sem pastos no dia a dia, pessoas ficarão ilhadas em seus currais. 

É *oda. 

quinta-feira, 5 de abril de 2012

O círculo central muda toda hora de lugar

Era certeza que o estavam tirando. Ou ele que não sabia se colocar. Obviamente duvidavam de sua masculinidade. Bastava se portar como homem, como se soubesse... Sentia que os olhares que lhe destinavam eram débeis. Vai ver estava debilitado de boas faculdades mentais. Ó. Ká. Era preciso se encontrar. Mas chegara até ali por bifurcações que não deixavam rastros, como se o mundo tal qual conhecia fosse aniquilando-se a si mesmo a cada novo passo dado. Os dardos jogados no próximo alvo iam a esmo. O círculo central mudava toda hora de lugar. Como se estivesse vivo. Um objeto animado. Um animal racional desanimado por não compreender à sua volta. A floresta ainda era bela. A princesa continuava presa. Só precisava transpor aqueles obstáculos para salvá-la. Mas será que ela o salvaria? Será que ela saberia colar os cacos do seu mundo que foram ficando para trás? Ou fariam um novo mundo com a sua prole? Tudo que queria era enxergar um palmo adiante do próprio nariz. Só enxergava o próprio. Um vesgo forjado pela circunstância. Estrábico que não fixava um ponto fixo. Se ao menos tivesse o prefixo de um SAC para ligar, ouviria as opções e escolheria falar com um dos atendentes, que rangendo os dentes não lhe explicaria nada. Provavelmente a opção nove, que cairia nove vezes e, se houvesse insistência pela décima, ouviria o que já sabia: Pouco. Ou fariam os procedimentos de praxe que na prática só solucionavam o problema até a ligação ter um fim. “Mais alguma coisa? Agradecemos a ligação e uma boa vida até a morte!”. Protocolos não serviam de nada. Deveriam ser quebrados pela sensibilidade dos corações. Era tudo questão de tempo, de clima: chuva pra pensar nas faltas e sol pra ver as presenças dos outros. Mais uma igual primavera e ficaria louco. Por enquanto, olhava por cima quem o olhava de lado, retendo o máximo de tempo a pálpebra firme, imóvel, enfática, fecundando ideias para obter o êxito, tirando da frente tudo o que o impedia de prosseguir, colocando todos os pingos de gente grãos de areia em seus devidos lugares, mostrando que os gêneros não se definem só pelo sexo, vide os ratos e leões transfigurados em homens, e ratazanas e tigresas mulheres, existindo até simbiose de masculinos-femininas, e vive-versa. Ele estava ciente, paciente, consciente.