quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

O primeiro dia deles

Pontual como o sol. Trabalhador braçal. Sem veraneio. Apenas verão. Chorando chuva com porcentagens de alegria e tristeza. Buscando lavar, levar a leveza. Beleza. Água é vida. Brinde ao ser que ilumina. Corpo celeste. Funcionário padrão que chega sempre chegando. Bate cartão. Na hora certa. Roupas brancas abaixo do céu cinza. Solares. Ele quer ser pontual igual. Iluminar o primeiro despertar dela no novo ano, ela que é solar sabe que essa vontade é dela; ele, só quer que ela seja dele, mesminha, nuinha, e nu se prepara para ser menos cru quando chegar esse momento, ser mais ele para que junto a ela possam ser ‘nós’, embromarem-se, embrenharem-se, num ir e vir frigir de matérias rígidas e maleáveis, seguindo os riscos de suor que escorrerão da quentura, agridoces de prazer e satisfação, com mil arranhões sem dedos, abertas percepções. Sempre fora noite, mas quererá prolongar ao máximo esse instante que é finito, tornando-o infinito enquanto dure, e como corre a areia da ampulheta do tempo, correrão um para o outro, um do outro, num brincar lúdico, num erro certo, numa certeza fulgaz, até o astro-rei se pôr no arrebol, na rede. Iluminar-se-ão. Adorarão as suas naturezas indígenas, dóceis e guerreiras, cheias de magias, feitiços, vícios, vincos para regozijo. Luares. Esse o primeiro dia de muitos. Com fôlegos, o segundo idem. Sem, apenas contemplação. Comer com o olho a silhueta alheia, o físico, sugar com beijo o espírito. E devolver. E sugar. E devolver. Ele respira. Um desejo. Um dever. Um devir. Ela que é solar sabe do que ele está falando!  

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O natal está aceso

“Quem disse que não ia ter natal?” Um mau velhinho lhe disse vendo-o sair da loja dos chineses ‘a partir de R$1,99’ com o saco transparente deixando avistar o montante de luzes pisca-pisca que comprara a preço módico, marca genérica, vindas de além mar sem pagamentos de impostos.

— Ho, ho, ho! Não vai ter natal!

O senhor de barbas grandes cinzas de sujeira vestia uma camisa vermelha de partido político — não por ser militante, mas por que ganhara —, bermuda da mesma cor com o número dez na dianteira da coxa direita e do outro lado um emblema/símbolo/logo que não se distinguia, pelo gasto da tinta antiga. Provavelmente um fardamento de clube de bairro, participante de campeonatos amadores. Futebol e política. Faltava religião como tema para não discutir, pensou ele a olhar para aquele senhor.

Sentado na sarjeta, as pernas esticadas e cheias de feridas deixavam às mostras um pé preto com cascas brancas emoldurados por chinelos brancos e azuis, a parte branca do pisante mais pra amarela (no caso o pisante artificial que substitui ou auxilia ou da folga ou férias ou deixa à vontade o pisante natural). Ao seu lado, três cachorros sarnentos faziam vezes de renas, amarrados ao carrinho que continha papelões dentro.

— Fio, não vai ter natal! —, insistiu — A crise tá braba! —, arrematou.

Ele, por educação, empatia, acessório de civilidade, ou por ser natural do ser humano ouvir o que o outro fala, parou para dar atenção. Símbolos moribundos de uma festa que comemora o nascimento.

A crise — de fora pra dentro — realmente se instalara, já a crise — de dentro pra fora — sempre voltava todos os finais de ano. A contabilidade não batia. Bancos ofereciam crédito para aqueles quais as carteiras convalesciam depois de 365 dias corridos, sofridos. Banqueiros planejavam viagens com as famílias. Férias. Folga. À vontade. Natural, para eles sempre iria ter natal. Os meros mortais da plebe haviam de se virar, antes da virada. Em uma sessão mediúnica perguntaria a Abujamra: “Quem fez mais mal a humanidade: a má literatura, a religião ou os bancos?”. Não estava certo que receberia a resposta.

Alguns planos foram rolhas de espumantes que estouraram em faces estupefatas. Noutros, pôde-se sentir o gosto da vitória de quem sobe no pódio e desperdiça garrafas e garrafas do líquido comemorativo em rodízios de cabeças. Certo. Comemoraria com a galhardia de um pró-seco, íntegro, altivo, se contentando.

A ideia rodava como os giros do eixo da terra, em torno de si. Descontinuar. Mudar a rota, o rumo, para ter mais prumo e não cair bebaço de desgosto, no máximo dormir bem, chapado de satisfação.

Pois bem. Abriu a caixa que comprara e deu-a ao senhor ali. Fez uma reza mental à santa.

— Brigado, fio!

— Qual o seu nome, senhor?

— Eu me chamo Chico —, acreditava em espíritos, pelo menos no natalino, o mais moço.

— Vamos fazer o seguinte: vou colocar essas luzes no seu carrinho, posso?

O velho o olhou com desconfiança.

— Não tem cabimento isso, não. Sem necessidade. Tem nem como ligar...

— Tem uma bateria aqui, eu iria colocar na sala de casa. Como moro sozinho e queria economizar energia, comprei desse tipo. Agora decidi comprar outras pra ligar na tomada.

Deu um colorido bacana àquele amontoado. Bonito, até. O senhor sorriu de canto de boca, com o olhar marejado ou de pura emoção ou das purinha que tomou antes estalando os poucos ‘quase nada’ dentes, ou da mistura das duas coisas, como se tivesse inventado um novo drinque onde lágrimas eram elemento essencial. Pouco. Quase nada. Muito para quem tem menos ainda.

— Brigado!

O natal havia começado, com a bateria carregada e ligado na tomada.