“Quem
disse que não ia ter natal?” Um mau velhinho lhe disse vendo-o sair da loja dos
chineses ‘a partir de R$1,99’ com o saco transparente deixando avistar o montante
de luzes pisca-pisca que comprara a preço módico, marca genérica, vindas de
além mar sem pagamentos de impostos.
—
Ho, ho, ho! Não vai ter natal!
O
senhor de barbas grandes cinzas de sujeira vestia uma camisa vermelha de
partido político — não por ser militante, mas por que ganhara —, bermuda da
mesma cor com o número dez na dianteira da coxa direita e do outro lado um emblema/símbolo/logo que não se distinguia, pelo gasto da tinta antiga.
Provavelmente um fardamento de clube de bairro, participante de campeonatos
amadores. Futebol e política. Faltava religião como tema para não discutir,
pensou ele a olhar para aquele senhor.
Sentado
na sarjeta, as pernas esticadas e cheias de feridas deixavam às mostras um pé
preto com cascas brancas emoldurados por chinelos brancos e azuis, a parte
branca do pisante mais pra amarela (no caso o pisante artificial que substitui
ou auxilia ou da folga ou férias ou deixa à vontade o pisante natural). Ao seu
lado, três cachorros sarnentos faziam vezes de renas, amarrados ao carrinho que
continha papelões dentro.
—
Fio, não vai ter natal! —, insistiu — A crise tá braba! —, arrematou.
Ele,
por educação, empatia, acessório de civilidade, ou por ser
natural do ser humano ouvir o que o outro fala, parou para dar atenção. Símbolos moribundos de uma festa que comemora o nascimento.
A
crise — de fora pra dentro — realmente se instalara, já a crise — de dentro pra
fora — sempre voltava todos os finais de ano. A contabilidade não batia. Bancos
ofereciam crédito para aqueles quais as carteiras convalesciam depois de 365 dias corridos, sofridos. Banqueiros planejavam viagens com as famílias. Férias. Folga. À
vontade. Natural, para eles sempre iria ter natal. Os meros mortais da plebe
haviam de se virar, antes da virada. Em uma sessão mediúnica perguntaria
a Abujamra: “Quem fez mais mal a humanidade: a má literatura, a religião ou os
bancos?”. Não estava certo que receberia a resposta.
Alguns
planos foram rolhas de espumantes que estouraram em faces estupefatas. Noutros,
pôde-se sentir o gosto da vitória de quem sobe no pódio e desperdiça garrafas e
garrafas do líquido comemorativo em rodízios de cabeças. Certo. Comemoraria com
a galhardia de um pró-seco, íntegro, altivo, se contentando.
A
ideia rodava como os giros do eixo da terra, em torno de si. Descontinuar.
Mudar a rota, o rumo, para ter mais prumo e não cair bebaço de desgosto, no
máximo dormir bem, chapado de satisfação.
Pois
bem. Abriu a caixa que comprara e deu-a ao senhor ali. Fez uma reza mental à santa.
—
Brigado, fio!
—
Qual o seu nome, senhor?
—
Eu me chamo Chico —, acreditava em espíritos, pelo menos no natalino, o mais
moço.
—
Vamos fazer o seguinte: vou colocar essas luzes no seu carrinho, posso?
O
velho o olhou com desconfiança.
—
Não tem cabimento isso, não. Sem necessidade. Tem nem como ligar...
—
Tem uma bateria aqui, eu iria colocar na sala de casa. Como moro sozinho e
queria economizar energia, comprei desse tipo. Agora decidi comprar outras pra
ligar na tomada.
Deu
um colorido bacana àquele amontoado. Bonito, até. O senhor sorriu de canto de boca,
com o olhar marejado ou de pura emoção ou das purinha que tomou antes estalando
os poucos ‘quase nada’ dentes, ou da mistura das duas coisas, como se tivesse
inventado um novo drinque onde lágrimas eram elemento essencial. Pouco. Quase
nada. Muito para quem tem menos ainda.
—
Brigado!
O
natal havia começado, com a bateria carregada e ligado na tomada.
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