Pulou, foi sua última jogada, cartada,
empreitada. Daquela altura, o mestre-de-obras da empreiteira quando construía
aquele andar do prédio olhou para baixo e sentiu um frio na barriga. Muitos
anos antes dele pular. Era um pressentimento.
Quatorze andares. Catorze. As duas formas
são corretas. O corretor automático do Word não denúncia erro. Difícil seria
pro corretor de imóveis vender ou alugar aquele apê depois de ele saltar, qual
o quê. E se esfacelar na rua. Como carne amassada de hambúrguer. Feito de
minhoca, rins, pâncreas, bílis, misturas de carnes. Foi de encontro à luz. Sua
alma - se sobreviveu - olhou a sua matéria estatelada e sentiu enjôo dos
fast-foods. Não tinha o que jogar pra fora. Nem pra dentro. Não se tinha.
Ficaria vagando naqueles cômodos onde curtiu até o máximo a sua depressão.
Repetiria o salto um sem-número de vezes. Esse seria seu carma até aceitar que
deveria ir pra outro mundo. Ou o seu perfeccionismo não desistiria em busca do
salto perfeito, aquele onde não há vestígios de que passou por esse mundo.
Atingiu o peso de muitas toneladas. Se
alguém passasse por baixo àquela hora seria esmagado por uma força descomunal.
Seria muito azar. O mestre-de-obras passeando com seu filho pela cidade
mostraria orgulhoso os prédios dos quais participou da construção; diria que o
filho devia se orgulhar pois o pai participou da construção daquela cidade
grande, imensa, mas ao mesmo tempo com ares de pequena. Contaria no exato
momento da queda que sentiu um calafrio quando estava naquele andar, muitos anos antes do outro pular. Lacunas de espaço-tempo. Buracos de minhoca. Apontaria
com o dedo e veria um corpo caindo com uma velocidade de carro de Fórmula 1.
Seria muito azar. E ele, o pai, dizia pro filho que não era bom pronunciar essa
palavra, para evitar maus agouros. Isso não aconteceu. De os destinos se cruzarem na esquina da vida. Sinal vermelho. E a relatividade da duração das horas se mostrou voraz quando aqueles quatorze – ou catorze – andares pareciam
uma eternidade, tempo onde passou pela vista do suicida toda uma vida, ou todas
as mudanças que a vida sofreu em suas diversas fases, o que dá a impressão de
muitas vidas vividas em uma só. Mesmo na morte o que mais se vê é vida. No meio do caminho desejou voltar atrás. Mas
não inventaram máquina do tempo. Pelo menos não até a época da sua morte.
Talvez mais pra frente, humanos até conseguissem voar devido aos avanços da
ciência e as mutações genéticas que antes só existiam na ficção fariam parte da
realidade.
Pra ele já era isso. Misturava o imaginado e
o real constantemente. Pendia mais para as viagens. Não obstante nunca saiu do seu país. Foi no máximo até cidades próximas que faziam parte da macro-região em
que morava. Depois do pulo foi além, pro além, rumo ao desconhecido, ao infinito ou a
finitude. Não supunha. Foi tirar a prova dos nove. Se fosse um gato de sete
vidas como no clipe da banda Gram teria a possibilidade de tentar de novo e de
novo e de novo. Mas como aquele, faria o salto derradeiro quando as suas vidas
se esgotassem, talvez pelo mesmo motivo. Será que foi isso que aconteceu? Fica
a pergunta sem resposta. Pergunta que gera pergunta que gera pergunta. Poderia
ter um milhão de vidas que repetiria os mesmos erros.
Do avião, os passageiros olham pra baixo e
veem a pequenez dos seres humanos lá. Formigas. Pensam na pequenez deles
mesmos, mesmo sendo pessoas importantes, constantemente à frente dos holofotes,
reconhecidas por outras. Elefantes. Tudo prossegue normal até aquele momento. Num "ops!" a chuva aperta.
Um deles olha o aplicativo de clima no celular e avança para os próximos dias,
alterando as cidades várias vezes, tal qual será o itinerário dos compromissos.
As estatísticas garantem que o avião é o meio mais seguro de transporte de
passageiros. Estão tranquilos. Mais o tempo fecha. O piloto alerta que se
segurem firme porque o pouso vai ser forçado. A nave poderia sofrer avarias,
mas dentro em breve estaria tudo sob controle... Alguns minutos depois o fogo
consome um terreno baldio e várias casas ao redor. Uma bola de chamas. E todas
as máquinas que estavam a bordo sofreram avarias irreparáveis. O corpo humano é
uma máquina frágil. É um, dois. Grãos de areia a menos no monte. Toda vida faz
parte da humanidade.
Acorda. Olha a corda. Está enforcado em
pensamento ruins. Pensa em se enforcar. A cadeira está à postos, a corda idem.
Não há mais o que fazer. Olha o avião que passa ao longe e pensa que poderia
viajar antes de cometer tal ato. Não tem empolgação, não tem vontade, não tem mais
nada. Sua vida é um não. Não agradece por ter acordado vivo, por ter visto o
dia nascer. Tudo está escuro. Seu quarto é treva. Rodeado de bajuladores que
não querem saber da sua verdade. Vendeu sua cobertura do décimo quarto andar.
Agora seria uma boa. Mal. No chão, ou se remedia até não querer mais para
mascarar o que não tem remédio ou mete uma bala nas fuças ou a terceira opção,
aquela que está a sua frente, que é a única que realmente cogitou de verdade.
Os que o conhecem verdadeiramente sabem que ele só poderia fazer isso desse
jeito. Os que se preocupavam sabiam que estava prestes. Ajudavam com conselhos
e abraços. Não bastou.
Dinheiro não faltava. Fama tinha. Família
também. O que era aquele vazio? O vazio da existência? De não ter certeza? O
mundo acabaria um dia. Não esperaria. O mundo para ele acabaria quando o seu
mundo acabasse.
Levantou reticente, soluçando em seus
passos. Subiu na cadeira como um gato que sobe em uma penteadeira alta, com
vagar e calma impossíveis de serem reproduzidos no mais fidedigno slow-motion.
Olhou a janela. Embrulhou o pescoço com um cachecol de mortalha. Empurrou a
cadeira.
A vida é um salto.
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